Há datas, mas acima de tudo, momentos que não se pagam da memória, independentemente do tempo que passe, dos acontecimentos que ocorram. Quando paro para pensar, o que ocorre com frequência, invade-me um sentimento nostálgico de vivências imemoráveis. Dou-me conta que no próximo mês fará três anos que o nosso melhor amigo partiu, vítima de melanoma. Fechou os olhos para o eterno descanso, mas vivo nos nossos corações. Viveu a vida ensinando aqueles que consigo privavam e mesmo no fim dos seus dias mostrou-nos a luz que não conseguíamos ver. É surpreendente como mesmo no fim do seu trajecto conseguia fazer-nos rir e indicar-nos caminhos para além da tristeza. Encerrou em si, sempre, uma infinidade de transformações, que se revelaram essenciais para si mesmo e para os outros, por isso e por muito mais, que não consigo expor em palavras, desprendo-me para vos tentar mostrar o porquê de todos os anos o relembrar aqui. Exponho, por conseguinte, um episódio verdadeiramente marcante.
Um dia depois de ter sabido da terrível doença que o afectava e da impossibilidade de a vencer, chegou ao café à hora marcada, sentou-se e disse: “então Araújo vai uma bejeca ? e tu oh filósofa deixa-te de coisas porque hoje posso beber.” Na altura estava a dar aulas em Castelo Branco, aprendia a lidar com a diferença linguística da região e acabámos por nos envolver numa discussão que versava sobre a importância dos regionalismos. Lembro-me que o Brás e o Araújo acabaram por entrar numa discussão mais profunda, indo à literatura portuguesa. Falaram de Alves Redol, de Eça de Queirós, de Camilo Castelo Branco e de tantos outros. Quando dei por mim, estava na hora de ir. O Brás, achava que ainda era cedo e vociferou: “deixa de ser tão certinha e fica aqui com o amigo.” Disse-lhe não poder, porque no dia seguinte eu e o Araújo teríamos que nos levantar cedo para ir ajudar os meus pais a limpar um terreno junto ao rio da minha aldeia. Não esperava a reacção dele, que se expressou nestes moldes: “ai é? Então também vou. Sim, mais um a ajudar é sempre bom.”
- “Brás, és doido, com o problema que tens é melhor não.” – disse eu
- “Olha, olha…lá porque estou mais para lá do que para cá, tenho de continuar a viver. Vou e ponto final.”
No dia seguinte lá estávamos todos na levada a ajudar os meus pais, o sol apertava, pelo que o meu pai, conhecedor da situação do Brás lhe disse para ir para a sombra e se proteger, devidamente, do sol. A resposta que o Brás lhe deu marcou e continua presa na memória de todos quanto a ouvimos: “o sol que me podia fazer mal já fez, agora é esperar pela minha hora, mas tem de ser uma hora em que deixe uma lembrança boa”, dizia rindo.
Nunca esquecemos esse dia, a forma como ria, como dizia “porra esta coisa custa”; “xi, um copito ajuda”; “como pode esta gente viver da agricultura?”; “bolas vai lá vai que eu daqui a nada vou mas é ressonar”. Foi um dia em que rimos muito, dele e com ele, em que nos ensinou que as dores se amenizam se deitarmos para fora a ira. Mostrou-nos que a despedida com dignidade é importante, que importa que mesmo no adeus nos sintamos vivos porque somos amados.
Uns dias antes da partida escreveu estas palavras para o Araújo e para mim: “Não escolhemos o rumo da nossa vida, quanto vivemos ou podemos fazer, mas escolhemos os nossos amigos. Eu escolhi-vos a vós, para trilharem comigo os caminhos alegres e duros da minha vida. Amo-vos.”
Dizer amar não basta, temos de sentir o amor, mas acima de tudo partilhá-lo com os demais, por isso partilho aqui, mais uma vez, o amor incondicional e desprendido que nutri e nutro por ti Brás.